Moda

Normando: Marco e Emídio Contente em entrevista exclusiva

Norte magnético! Nos últimos anos, a Normando vem repensando questões e construindo a própria visão de Brasil. Veja uma entrevista exclusiva com as mentes criativas por trás da marca.

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Fotos: Igor Kalinouski

Para onde vai o olhar quando se mira o interno? Nos últimos quatro anos, a Normando vem repensando questões e construindo a própria visão de Brasil: aquela baseada em vivências reais e não na consideração externa sobre “o Brasil”. Questões de origem e contemporaneidade aparecem na nova coleção, criada pelo diretor criativo Marco Normando ao lado do marido e sócio, o artista visual Emídio Contente. Os dois, migrados de Belém para São Paulo, mantém suas raízes firmes no Norte. E de lá trazem o muiraquitã, amuleto de proteção dos povos originários do Baixo Amazonas, como ponto de partida da coleção que abre discussões estéticas sobre como lidamos com as escavações sobre nosso passado. L’OFFICIEL encontrou a dupla da Normando na sua loja/ateliê recém-aberta para conversar sobre os processos de uma marca que, apesar de jovem, já construiu seus patamares.

L’OFFICIEL: Essa referência do muiraquitã; sentiu que precisava de proteção de alguma forma?
MARCO NORMANDO: Na verdade, eu sempre quis falar sobre arqueologia. Me parece que é uma ciência que está se apagando, sabe? Desde que aconteceu o incêndio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, quando se perderam vários artefatos indígenas – isso me deixou muito mal, pensando em como poderia falar sobre o assunto. Tanto que queríamos fazer a campanha apenas com arqueólogos e arqueólogas. Hoje há um olhar forte sobre influencers, mas no que eles influenciam de fato? Ao mesmo tempo, se falarmos sobre um professor de arqueologia que tem uma vertente de estudos sobre a Amazônia, ninguém dá muita bola. Considerando o público jovem, claro – a academia, obviamente, dá atenção. Mas na moda, quando falamos sobre assuntos assim, nunca trazemos pessoas que têm de fato uma importância dentro da sociedade. Foi meio esse o objetivo. É necessário trazer um holofote para essas pessoas. A moda só coloca personagens que falam sobre venda, e nenhum sobre ciência. Pode ser interessante elucidar um pouco, descentralizar esse assunto. Sem querer me vestir como herói, é claro que eles são muito reconhecidos nas próprias áreas. Mesmo conversando com Mariana e João, dois jovens profissionais da arqueologia que participaram da campanha e disseram que, na própria academia, a valorização do arqueólogo está diminuindo. Imagina? É uma pessoa que estuda nossa origem, nossas linguagens. Isso se perder com o tempo?

L’O: Vai contra a própria definição da profissão.
MN: Exato! Me trouxeram essas questões. E o Emídio trouxe outras ideias. Ele age como curador dentro das coleções e pensou em abrir o leque. Daí veio o título “coleção – coleções”, para abordarmos essas coleções – de moda, de arqueologia, de obras de arte em geral. Pois é algo com que temos um contato muito grande, até pessoalmente – nossos amigos são quase todos artistas plásticos. E conversa com o que fazemos desde sempre, como a nossa camiseta – presente desde a primeira coleção, sempre com a mesma ideia: um objeto exposto, com um número e uma ficha técnica. São colecionáveis, temos clientes que têm todas. É também uma coleção por si.

L’O: E se transforma em uma arqueologia sua.
MN: É exatamente esse o pensamento. Assim como se olharmos para o que propomos como arqueologia. Se você pegar esses artefatos, eles são sempre feitos de matérias-primas orgânicas que os povos originários moldaram para ser algo funcional. Ou até mesmo não. Se você pensa em artefatos históricos, normalmente há um propósito – uma cestaria, uma lança, um arco e flecha. Daí vem o muiraquitã... que não tem funcionalidade. É um objeto quase contemplativo. É muito interessante ver que os povos indígenas têm uma intelectualidade enorme para construir algo assim. Por mais que haja a ideia do amuleto, da proteção, é apenas um objeto. Daí vem também nosso interesse de falar sobre isso. Como outros artigos que apontam como a art déco foi influenciada pelos povos originários, pelos grafismos. Quase não se fala sobre isso. É um esforço de elucidar essa inovação dos originários, tirar do ostracismo.

L’O: E tem essa história do látex, que é maravilhoso.
MN: O látex é o ouro desta coleção. Partiu de uma pesquisa de matéria-prima e Emídio chegou nessa história, que é de um grupo de artesãos de Rondônia, extrativista, quase familiar, que está ressignificando a floresta e produzindo esses panneaux de látex. É uma fina camada de gaze de algodão coberta por várias camadas de látex, que secam ao ar livre. Há também o processo, uma defumação, com a queima da casca de babaçu e outras árvores, que dá esses degradês de marrom que são únicos. Vimos e pensamos: por que não usar na roupa, quase como um couro? Usando até os possíveis defeitos, como as marcas dos pregos que prendem o látex nos bastidores, as rebarbas. Eu acho bonito, é uma ode à técnica deles. Não quero disfarçar a cara rústica, a história. E como é um material orgânico, não tem muito controle: às vezes vem mais brilhoso, às vezes, fosco. Então fizemos essas peças de alfaiataria, que são únicas e sob demanda. O blazer [que Marco veste na página anterior] leva até cinco dias, costurar esse látex é todo um processo. Ainda mais porque não tem nada de falso nas roupas, os bolsos são funcionais, todo nosso pensamento dos detalhes se mantém como se fosse uma lã. E vendem bem, algo que até nos surpreendeu. Não é uma peça que você encontraria fácil por aí.

EMÍDIO CONTENTE: O legal é que esse pessoal de Rondônia já está com esse trabalho há tempos. A cooperativa mesmo, acho que já tem uns 20 anos. Não é um material inédito, mas trouxemos para um lugar um tanto novo. Eles ficaram superfelizes quando reconheceram o látex dessa maneira. Muita gente já tinha usado para fazer vestuário, especialmente no começo dos anos 2000. Mas o processo passou por um beneficiamento, mudou muito. No começo, a gramatura era bem alta, então era muito usado para produzir calçados e bolsas. Agora, há essa possibilidade de uma gramatura bem menor, mais fácil de manusear. E há outras marcas usando, eles estão até com certa dificuldade de atender à demanda, pois a produção se mantém pequena.

MN: O que é ótimo, afinal esta é a ideia: fomentar para que possam produzir mais. Estamos fomentando diretamente, comprando, mas também incentivando outras marcas a usarem, respeitando a produção. O próprio processo de secagem, por exemplo, depende do clima. Num balanço perfeito, esses panneaux secam do nascer ao pôr do sol. Mas a umidade da floresta é um grande fator. Há esses obstáculos da natureza que, ao mesmo tempo, achamos maravilhosos. Não somos uma marca de fast fashion, então podemos lidar com a temporalidade. Além de tudo, carrega uma poesia.

EC: Respeitamos o processo deles. Não estamos inventando a roda.

MN:
A verdade é que ninguém pode inventar roda nenhuma. Não posso dizer que sou a primeira pessoa a usar a seda da maneira tal, a usar o látex – quando tudo já foi usado por outras marcas. Sou uma pessoa que respeita muito o passado e quem veio antes. Se não fossem elas, não estaríamos aqui.

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L’O: Vocês sentiram o tempo passar nesses quatro anos?
MN: Passamos por uma temporalidade insana, especialmente quando pensamos em pandemia e tudo o que causou em todo mundo. Às vezes falo para o Emídio: cara, a marca já tem quatro anos.

EC:
Parece que tem muito tempo, parece que abriu ontem. Oficialmente, abrimos durante a pandemia. O lançamento da primeira coleção era para acontecer justamente no primeiro lockdown. Adiamos alguns meses, nada mudou. Foi quando entendemos que tinha que ser on-line, outro ritmo. Respeitamos muito a pandemia e conseguimos crescer sem desrespeitar as questões sanitárias. É aí que está a riqueza de ser autoral, de ter uma escala em que se consiga ter o processo na mão. Conseguir respeitar as pessoas com quem trabalhamos, comprar matéria-prima de lugares que acreditamos. A pandemia foi um puta teste, tudo o que veio depois foi tranquilo de lidar.

MN: E viemos da Amazônia, há esse cuidado, pois já passamos por tanta coisa lá, historicamente – de exploração, devastação... é inerente. Desde o começo, para mim, abrir uma marca não faria sentido se não fosse sustentável. É um pensamento que permanece. E ser sustentável em todas as formas possíveis, da matéria-prima ao social. É tão natural que não dá para ser diferente.

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L’O: Quanto a Normando cresceu nesse tempo?
EC: Não tenho agora números exatos, mas a produção... foi algo de dez vezes. Tivemos muitas fases nesse trajeto. Abrimos a marca só via e-commerce, na maneira que entendíamos ser possível. Depois entramos nas multimarcas. Em seguida, quando o Shop2gether fez nossa primeira compra realmente grande, entendemos ser preciso pensar de maneira um pouco diferente. Foi um segundo momento, muito importante. Agora, com a loja física, é outra história.

MN:
E há o sob medida, respiro criativo que eu amo. É maravilhoso pensar na história da pessoa, o grande privilégio de poder ter essas trocas. Ainda mais quando são pessoas que a gente admira tanto. Elas trazem essa riqueza nos seus trabalhos que refletem na criação. No sob medida, a coisa sai do roteiro. Seja para noivas e formandas ou com artistas e influencers. É um momento em que podemos explorar outras técnicas.

L’O: Como funciona essa dinâmica de casal, trabalhando juntos?
MN: São 12 anos juntos. Há essa cumplicidade muito importante e interessante entre nós. Algo que já existia em Belém, enquanto eu estudava moda e Emídio já era fotógrafo: sempre dávamos opinião um no trabalho do outro. Quando viemos para São Paulo e ele começou a fazer mais trabalhos artísticos, essa troca se manteve.

EC:
Nos dividimos e revezamos muito nesse lugar em que um está mais criativo e o outro numa planilha, falando até onde se pode ir. Tem essa forma de trabalho que é bem orgânica.

MN:
É, tem esse balanço. É uma construção de cumplicidade, quase simbiótica. É curioso, pois Emídio sempre foi das artes, tinha interesse pela moda mas não fazia parte. E eu, o mesmo com o mundo artístico. Nos conhecemos numa exposição dele no Amazônia Fashion Week. Dali, fui me inserindo no Fotoativa, um grupo de fotografia de Belém que existe desde os anos 1980 e foi um celeiro para uma série de nomes, Luiz Braga, Elza Lima, Guy Veloso, em que Emídio também estava. Era um universo que apreciava, mas muito distante. De repente, estava trocando na mesa de bar com esses artistas todos, nomes gigantes no Pará e fora. E nada foi pensado, foram pessoas que surgiram na vida por conta dele e se tornaram repertório para tudo o que fazemos.

L’O: Quando o entrevistei pela primeira vez, no início da marca, você falou muito sobre se sentir nômade. Esse sentimento passou?
MN: Sim, não me sinto mais tão nômade. Acho até que por conta da pandemia, que me forçou a esse olhar interno. Me sinto muito mais de Belém, isso mudou. São Paulo é a cidade em que moro, mas minha vida está lá, minha família. Posso tentar fazer qualquer coisa, mas vai ser sempre olhando para lá.

L’O: Já pensaram em levar a Normando para Belém?
MN: Queremos muito. Temos um projeto de ter não só uma loja em Belém, mas também um processo fabril. É algo importante para nós, pois queremos fomentar a economia local. Funciona quase como um processo de devolução. Até para as pessoas que estão saindo das faculdades e se veem sem um território, sem um mercado, como foi o que aconteceu com a gente.

EC: Saímos de Belém por uma questão de oportunidade, para tentar construir algo e voltar com isso um pouco mais sólido. E não voltar no sentido de tirar daqui, mas de acrescentar. É algo supercomplexo, pensando em questões logísticas entre Belém e São Paulo. Mas há lá uma fase acontecendo. Talvez, hoje, os criativos entendam melhor que não preciso mimetizar outra coisa, é melhor trabalhar com o que se tem.

MN: Tem havido um reconhecimento maior; no parar de olhar para o vizinho e enxergar o seu, se apropriar das origens. Muito importante entender a riqueza que existe em fazer algo que converse com sua realidade. Eu não teria saído de lá se houvesse oportunidades. Aquilo tudo é a minha vivência. Se não fosse do Norte, não teria esse material. Fico muito feliz quando me chamam de “estilista do Pará”. Não acho pejorativo.

L’O: Ao mesmo tempo, não corre risco de uma carga de exotificação nessa classificação? Isso não incomoda?
MN: Não incomoda pois é o olhar do outro, não o meu. Não posso influenciar essa opinião. Se o outro me vê como exótico, o referencial é dele.

EC: Não trabalhamos com esse lugar do exótico. Falamos de um Brasil que experienciamos. Não tratamos como suvenir. Talvez a Normando nunca seja o Brazilcore, pois não trabalhamos na tendência nesse sentido de ganhar um hype momentâneo. Queremos uma história relevante, que seja forte. Às vezes pegamos símbolos, como o muiraquitã ou a vitória-régia. Mas, quando se olham as coleções, as alfaiatarias de lã e de látex, numa paleta não óbvia, se vê que tudo faz sentido. Acho que aí a gente dá a nossa resposta.

MN: Não precisa ser caricato para ser do Brasil. Você consegue ser inteligente, mostrar que o brasileiro também tem referencial em artes e literatura, também é esteta. O que não gosto, claro, é se me tratam como uma pessoa limitada por ter vindo do Norte. Tenho muito orgulho do meu trabalho, de como consegui me aprofundar em detalhes e acabamentos para mostrar uma roupa tão bem produzida como lá fora – ou até mais. E nem falo isso com ar de pedância, mas comparando na prática mesmo. Você vê grandes marcas europeias vendendo peças a preços exorbitantes, muito mais caras que as nossas, e costuradas no overloque. Agora, revire minha roupa e veja que o acabamento é excelente. Se for me nivelar, não me nivele por baixo.

Créditos:

Fotos: Igor Kalinouski
Direção Criativa: Marcio Banfi
Modelos: Aline Souza (VZM) e Michelli Provensi (SINGULAR)
Beleza: Danni Quess
Styling: Fedra
Assistente de Moda: Helena Cândido
Assistentes de Foto: Rodrigo Gonçalves e Victoria Cavalcante
TrataMento de Imagem: Jéssica Oliveira
Produção Executiva: Alessandra Della Rocca

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