Exposição em São Paulo mostra nomes de cem anos na arte
Entre delírios! Exposição busca símbolos inconscientes de um passado mítico para reabrir interpretações de um Brasil moderno
Dentro da longuíssima agenda de mostras e discussões que invocaram o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 durante os últimos meses, muito foi analisado sobre os aspectos históricos e até um pouco esquecidos que reverberam até hoje na produção artística brasileira. Mas, nos finalmentes das comemorações, uma nova exposição abre caixas de discussão incrivelmente inéditas. Montada no Sesc Pinheiros, em São Paulo, até 15 de janeiro, Desvairar 22 propõe exatamente isso: um grande delírio (controlado, mas nem tanto) sobre presenças de cem anos atrás que seguem no ar.
“Partimos da Semana de 22 e do livro Pauliceia desvairada, para tentar compreender o que essa ideia de desvario significou naquele momento e extrapolá-la. Mas a mostra não é sobre a Semana nem só sobre o modernismo”, explica Eduardo Sterzi, co-curador ao lado de Marta Mestre e Veronica Stigger. “É um pouco para entender o que fazemos com o modernismo hoje e como ele funcionou no Brasil como uma desorganização e reorganização de uma série de questões.”
“Muitas vezes o nosso caminho é escavar essa arqueologia da modernidade. É uma forma de ir para trás para ir para a frente”, reflete Marta, pontuando que 1922 carrega um alinhamento de datas importantes. Além do movimento artístico que aconteceu no Theatro Municipal de São Paulo, fundamental para a fundação de uma ideia de novo Brasil, aquele ano marcou o centenário da independência do país, a primeira transmissão de rádio por aqui e a descoberta da tumba de Tutancâmon, no Egito. “Olhamos muito para essas coincidências quase anedóticas para reconstruir esses tipos de relações muito inusitadas. A anedota tem um papel fundamental para desvairar essa história”, diz a curadora.
A presença da referência egípcia, que pode soar nonsense à primeira vista, é uma alegoria inconsciente que, além do imaginário coletivo, descobriram os curadores, perpassa muito da própria produção do modernismo inicial — e reaparece tanto em memórias de Juscelino Kubitschek sobre a fundação de Brasília quanto em imagens de Dom Pedro II em comitiva junto das pirâmides, em marchas carnavalescas e até no sarcófago que serve de centro à mostra. Para Marta, “é também uma retomada do lugar mítico africano, de uma herança que vem daí e perpassa até o Carnaval”.
Com 270 itens, entre obras, documentos históricos, filmes e músicas populares – indo de Lygia Pape e Tarsila do Amaral a Denilson Baniwa, passando por Os Trapalhões – Desvairar 22 analisa e remixa não só essa presença maluca do Egito na cultura brasileira mas também, em outro eixo paralelo, a presença indígena. “A exposição tem uma estrutura quase paranoica, no sentido de que determinados temas vão se desdobrando e reaparecendo em outros lugares, refazendo conexões. A primeira transmissão de rádio chega em Edgar Roquette-Pinto, que já era um antropólogo e registrava canções dos Paresí — que servem de mote para uma série de músicas de Heitor Villa Lobos, um dos maiores representantes em número de obras da Semana de 22“, conta Veronica. “A partir disso, pegamos os índios errantes, usando uma expressão da época, para fazer uma passagem que vai de O Guesa de Sousândrade até a figura de Macunaíma, já repensada nos dias de hoje por um texto de Jaider Esbell.” Marta completa: “as ideias dos índios errantes e do Egito mítico servem como fios norteadores para repensar essa data de 22, mas sem fechar o discurso. É impossível fechá-lo”.
Remexendo com imaginários alucinantes, a mostra se diverte entre realidade e ficção, analisando como a construção do Brasil moderno se baseia muito em mitos e fábulas. E quer abrir caminhos para imagens de futuro, mas sem intenção de ser conclusiva. “Nos interessa pensar a relação do país com a história, que tem sempre esse âmbito que é quase onírico”, conta Eduardo. “Não tentamos fechar interpretações, queremos dar caminhos para que as pessoas explorem essa dimensão imaginativa da história. É um pouco entre o campo da mentira e da ficção, que são coisas diferentes. Ajuda a pensar quando é que esse delírio da história é produtivo e poético e quando ele serve de pura mistificação para enganar as pessoas.”