Vanessa da Mata vive Clara Nunes no teatro
Cantora estrela espetáculo que exalta o legado de um ícone musical para a cultura brasileira
Uma das maiores intérpretes da música nacional é trazida aos palcos de hoje para falar sobre liberdade artística em meio à brasilidade. Vanessa da Mata estrela Clara Nunes, A Tal Guerreira, musical que celebra a trajetória e a sensibilidade de uma das maiores artistas brasileiras de todos os tempos.
Em cartaz no Teatro Renault, em São Paulo, o espetáculo, com direção e adaptação de Jorge Farjalla, faz uma viagem pela trajetória da artista que marcou a história da Música Popular Brasileira. No enredo, a cantora é guiada pela amiga e diretora Bibi Ferreira e por seus Orixás. Clara Nunes ainda está arraigada no plano físico e precisa entender a transição entre dois mundos em uma mistura instigante e curiosa.
Entre momentos marcantes da carreira, um barracão de escola de samba é onde as personagens de sua trajetória se destacam em pedaços de carros alegóricos refletidos na realidade da cantora. Para contar a história de Clara Nunes, futuro, presente e memória no barracão da vida se entrelaçam para viverem esse grande carnaval chamado eternidade.
Em entrevista exclusiva à L’Officiel Brasil, a cantora Vanessa da Mata falou sobre os desafios de viver um dos ícones da música no teatro, a influência de Clara Nunes na cultura brasileira e as lições que aprendeu no palco ao viver uma das artistas mulheres mais consagradas de todos os tempos. Confira!
Quando surgiu a ideia de interpretar Clara Nunes no teatro?
Na verdade, a interpretação da personagem de Clara não foi imediata na minha cabeça. Nas minhas ideias, eu queria trazê-la ao mercado de volta, ao público porque achava que ela não tinha alcançado o lugar que sempre mereceu. Então, comecei a planejar fazer alguma coisa para que a memória dela voltasse. E, com os anos, eu fui entendendo o que poderia ser, para contar a história dela, que eu admirava muito, e era uma menina extremamente sofrida, e uma sobrevivente mesmo dos seus dramas. Ela era uma órfã de pai e mãe cujo irmão mais velho era arrimo de família e matou o namorado quando ela [Clara Nunes] tinha 13 anos. Porque o namorado espalhou para a cidade inteira que tinha desonrado. Na época, existia essa coisa de lavar a honra, matar a pessoa, enfim, e fugiu, quer dizer, Clara perdeu os quatro primeiros amores da sua vida.
Como foi a preparação para encarar a rotina nos palcos? O que foi mais desafiador nesse processo?
A preparação foi muito intensa e dolorosa até demais para mim. Mas pela atenção, pela auto cobrança. Acho que os textos também, por serem bem grandes, que é uma coisa que eu não lidava antes e não sabia como lidar, a tal profissão nova como atriz, além de cantar com uma roupagem meio anos 50, 60, vinda de Dolores Duran e dessa galera de Carmem [Miranda] também. Tudo com mais vibrato, uma maneira da Clara de cantar com mais escuridão na voz e com mais espaço. Isso era o mais fácil. Acredito que, para mim, o mais difícil foi a interpretação dos textos. Gravar os textos era um desafio enorme.
Clara Nunes sempre foi uma referência musical para você? No que mais ela te inspira?
Minha mãe ouvia muito Clara. Então, nos meus primeiros anos, eu acho que tive uma influência enorme, mesmo estando em um lugar de alta presença musical. Eu não tinha memória do rosto da Clara, nem dos cabelos. Fui percebê-la muito depois porque ela morreu. Eu era muito pequena. Mas acho que as referências e essa simbologia do sagrado, essa inteligência emocional de trazer um Brasil muito democrático, de cantar o Brasil num lugar tão culto, das três raças etc. Para mim, era uma coisa muito forte, de alta qualidade mesmo.
Além da aparência física, o que mais te aproxima de Clara Nunes?
Eu nunca me achei parecida com a Clara. Acho que é muito mais uma serenidade, uma maneira de falar mais calma e tranquila do que a aparência física. A Clara tinha os cabelos muito lisos e era muito branca. Ela fez permanente nos cabelos [técnica capilar para criar cachos ou ondas] depois de muito tempo, já trazendo essa nova identidade dela do samba. Mas eu acho que, por causa dos cabelos, as pessoas começaram a falar, mas muita gente não sabe que ela tinha os cabelos com permanente.
Clara Nunes foi um marco na cultura pelo pioneirismo na luta contra a intolerância religiosa e o racismo ao trazer as religiões de matriz africana em suas apresentações, além de quebrar tabus, sendo a primeira mulher com o maior número de discos vendidos no Brasil. Para você, qual característica da cantora a tornou pioneira em seu tempo?
Acho que tudo isso é uma imagem que traz tudo isso: a luta, a representação das religiões afro-brasileiras, essa coisa do usar branco que vem das matrizes afro-brasileiras que já não era uma coisa tão ligada à Carmen Miranda, já que foi a grande influência dela para assumir esse outro lado dos sambas e dos ritmos de rua que eu os chamo de originais brasileiros.
Acho que, para mim, o que mais era lindo era a extensão vocal dela, o timbre de voz e os ritmos que ela trazia. Ela [Clara Nunes] era um tipo de musicóloga. Ela cantava e as pessoas não sabiam muito bem que ritmos eram aqueles, então ficava numa onda um pouco meio estrangeira de dizer que era tudo samba. Mas a Clara cantava tudo, de folia de reis a caboclinho, forró, vários tipos de samba e podia cantar qualquer coisa. Isso era uma destreza muito forte e um poder muito grande para uma cantora: transitar nesses ritmos todos e trazendo isso para o pop brasileiro. Ela era o pop brasileiro da época; o pop no sentido de popular.
Em se tratando de figurino, as peças que caracterizam Clara Nunes trazem à tona a sua religiosidade afro-brasileira com rendas, adereços de cabeça, flores, pérolas e elementos marítimos. Para você, o que mais caracteriza Clara Nunes no palco nesse aspecto? Existe algum figurino favorito?
Os figurinos são copiados de Clara. Todos eles existiram. Então, até o figurino final, que foi o último usado no desfile da [escola de samba] Portela e cantou, são cópias dos originais. Aquilo tudo é muito Clara Nunes. Não tem como negar.
Se você fizesse uma retrospectiva da sua carreira, assim como ocorreu com Clara Nunes no espetáculo, qual episódio você destacaria?
Acho que nós temos algumas coisas em comum. Eu venho do interior, saí com 14 anos. Ela saiu com 15 anos. Tenho uma casa de shows – sou uma das donas da Casa Natura Musical - e Clara tinha um teatro. Acho que eu canto na mesma região que Clara, apesar de não a ver cantando as minhas músicas. Nossa diferença acho que é de tempo mesmo. Eu sou uma mulher do final do século para esse século e tenho minhas composições, produzo os meus discos e as diferenças são enormes, mas acho que o que mais nos aproxima é essa coisa do interior, a tranquilidade no nosso semblante. É a proximidade de um Brasil profundo, do Centro-Oeste. E o contato com as músicas regionais, que eu chamo de originais. Eu com a folia de reis, ela com a congada ou congado, dependendo de quem chama, pois isso é regional também.
O que Clara Nunes falaria para o Brasil de hoje?
Não tenho a menor ideia. Na verdade, acho que, se Clara estivesse viva, assim como Elis [Regina], Gonzaguinha, João Nogueira, Roberto Ribeiro, a música seria completamente diferente hoje porque eles eram muito fortes. O mercado traria menos músicas fáceis para o povo, teria mais respeito com o povo. Seria bastante diferente.
Esta foi a sua primeira vez em turnê com espetáculo. Qual lição você leva dos palcos para a vida?
Tenho muitas lições que eu levo desse espetáculo para a vida. Atuar me fez muito bem. Acho que me deu um gostinho de estar de férias de mim mesma. Cada vez que faço um show meu, eu venho com muito mais gás, vontade e força. Poder interpretar uma mulher deste gabarito, tão grandiosa é também poder entrar naquela época, naquela qualidade musical, na mulher tão merecedora de cantar uma alegria para o Brasil, mesmo tendo uma história tão dramática, drástica, penosa, dolorida. Essas experiências [no teatro] são sempre muito fortalecedoras e tranquilizantes, no final das contas. Elas transmitem uma vivência, uma sabedoria, uma segunda possibilidade de vida - digamos assim. Acho que todo mundo, inclusive as escolas primárias, deveriam ensinar o teatro porque isso livra as crianças de muitas violências domésticas e de problemas. Elas conseguem sair de si mesmas e de suas próprias pressões e encararem a vida de maneira diferente, sem precisar de qualquer coisa; só de brincar o teatro.
Pretende continuar a experiência como atriz? O que podemos esperar de Vanessa da Mata para 2025?
Eu adoraria continuar essa experiência, sim, mas tudo depende do meu tempo, dos meus lançamentos de disco e dos projetos que eu tenho naquele momento. Tudo tem que ser visto com muita antecipação para que haja dedicação porque vou ter que me dedicar a vera, de verdade.