Descarte ou Reciclagem: como as relações morrem?
Será que de fato alguma coisa permanece em uma sociedade líquida hiper-expositiva?
Dizem que o ano no Brasil começa depois do carnaval. O calor, o suor e a entrega que o verão proporciona formam o combo perfeito para a festa da carne. Bingo! Seres humanos precisam de seres humanos e isso é o que há de mais precioso na cultura carnavalesca.
Em um mundo cada vez mais imerso nas interações virtuais, as relações se assemelham, paradoxalmente, às efemeridades do carnaval, onde usamos “máscaras” e vestimos fantasias - não apenas no sentido literal, mas também no figurado, na construção diária de nossos avatares digitais. Essa transitoriedade, embora rica em liberdade e diversidade, traz uma fragilidade intrínseca às conexões que estabelecemos.
É de praxe que ao final da temporada, em um coro uníssono, a rua ecoe “Eu queria que essa fantasia fosse eterna” em um desejo quase utópico de perenidade em um cenário marcado pela impermanência.
Será que de fato alguma coisa permanece em uma sociedade líquida hiper-expositiva? Vivemos do recorte, do fingir até conseguir. O real problema reside onde a verdade para nós mesmos, em nosso íntimo, passa a ser deturpada. No fluxo de informações onde a horizontalidade da comunicação está mais do que estabelecida, quase não há espaço para o tédio, para a reflexão e a auto-observação. A alegoria do acúmulo - de seguidores, funções e likes nos soterra.
Bauman em sua teoria sobre a modernidade líquida já falava sobre a leveza e a fluidez das relações contemporâneas, onde o compromisso e a responsabilidade a longo prazo dá lugar à conveniência do momentâneo. No carnaval da vida digital, as relações são marcadas por uma constante busca por novidade e excitação. O mesmo excesso de dopamina encontrado na relação com as telas é buscado nas relações de carne e osso - o que muitas vezes não se sustenta. As infinitas possibilidades do online levam a umdescarte rápido das conexões assim que uma expectativa é quebrada. Nos relacionamos primeiro com nossas projeções, esquecendo que por trás delas existem seres humanos com suas complexidades e o outro é sempre um lugar desconhecido.
Assim como as fantasias de carnaval sãoabandonadas depois dos desfiles, relações são descartadas ao menor sinal de desgaste ou dificuldade em um ciclo vicioso de busca por uma idealização, um lugar que só existe em nossas cabeças.
Por outro lado, em meio à aparente fragilidade das conexões modernas, existe a possibilidade da reciclagem de relações, numa tentativa de renovação e profundidade frente a um mar de superficialidade. As relações podem ser reinventadas, fortalecidas por desafios superados e pela aceitação das imperfeições, algo ferozmente humano. O processo de reciclagem exige que tiremos as máscaras em um esforço consciente para reconhecer e valorizar a singularidade do outro.
Talvez a verdadeira arte esteja em aprender a brincar o bloco da existência sabendo a horacerta de deixar as fantasias de lado e, quando possível e necessário, costurar os furos e fazer os devidos reparos para manter viva a magia da conexão humana.