Moda

Fernanda de Goeye em entrevista: “colocar a cabeça para fora”

Fernanda de Goeye diz em conversa com L’OFFICIEL, que tem sentido vontade de “colocar a cabeça para fora”

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Fernanda De Goeye e modelos- Foto: Igor Kalinouski.

Talvez você não conheça Fernanda de Goeye pelo rosto, de pronto. Mas ela é uma figura veterana da nossa moda. Irrompida no começo dos anos 2000 como metade da grife cult Raia de Goeye, a criadora tem atuado de maneira low profile nos últimos anos. Quietinha, quase escondida na redoma, desde 2016 vem construindo a cartilha da De Goeye — marca que mescla suas vontades de modelagem com um jeito slow de criar. Atrás das portas da sua loja-QG, no Jardim Paulistano, a realidade é de ateliê que se apega no acabamento e tem público fiel — apesar da comunicação tímida. Agora, como ela diz em conversa com L’OFFICIEL, tem sentido vontade de “colocar a cabeça para fora”. Confira!

L’OFFICIEL Acho curioso pensar que você não é novata, mas a De Goeye é uma marca relativamente recente. 

FERNANDA DE GOEYE Sim, completamos sete anos em outubro do ano passado. Mas, de carreira, venho desde os 17, quando comecei na Daslu. Eliana Tranchesi [dona da butique de luxo] me via por aí, me achava descolada e propôs me contratar. Na época, queria fazer uma roupa para uma clientela jovem e jogou essa história na minha mão. “Faça uma coleção com tudo o que você gostaria de vestir”, ela disse. Então entrei e fui descobrindo, me virando. Desde pequena, sempre fui atenta ao corpo e ao vestir. Customizava absolutamente todas as minhas roupas, já tinha algo forte de modelagem. Fiz essa primeira coleção, aos 17, que acabou virando o Basic Daslu, que cresceu muito depois. Fiquei cinco anos por lá, até chegar à compra de importados. Depois acabei indo para Nova York, fiz FIT e, quando voltei, quis abrir uma marca nova. Foi quando abrimos, eu e Paula Raia, a Raia de Goeye, no começo dos 2000, que foi uma explosão. Quando engravidei, resolvi parar. Precisava dar uma pausa. Fiquei um tempo dando consultorias de estilo enquanto muita gente me perguntava quando voltaria a fazer roupa própria. Demorou, fui no meu timing.

 

L’O Como foi esse começo? 

FDG Quando resolvi começar a De Goeye, pensei em várias coisas. Não queria abrir algo que seguisse a mesma história de sempre, queria algo diferente, que fosse de extrema qualidade, tanto nos tecidos quanto nos acabamentos, e concorresse com os importados. Ao mesmo tempo, pensei em um tipo de negócio que fizesse mais sentido para mim. Não queria seguir o padrão de coleções de inverno e verão, liquidações… Para fazer a roupa no nível que queria, precisava de tempo. E tempo é algo muito valioso. Por isso decidi não fazer coleções, trabalhamos com fases.

 

L’O Mas qual a diferença principal? 

FDG São histórias que se complementam. Na verdade, uma fase vai se sobrepondo a outra. Elas vão entrando e têm que se linkar uma à outra, para fazer sentido. Especialmente por não termos liquidações, tivemos que entender o fluxo das coisas. Para ser um business sustentável, entende? Quero que a pessoa compre uma saia, que pode ser cara mas vai ficar no guarda-roupa — e, mesclando com outras peças de outras fases, pode transitar entre momentos diferentes. Quero que as pessoas usem muito a roupa, não é uma moda descartável. Todo mundo tem uma roupa com memória, né? O cashmere da mãe que não dá para ninguém, uma bolsa que ganhou da avó. Queria essa roupa que se perpetuasse, que ganhasse um valor emotivo. Obviamente é um caminho bem complexo. Demorei para atingir o nível de qualidade que temos hoje — e que é algo bem visível, as pessoas comentam. A qualidade das peças, você pode usar uma roupa do avesso que ela vai te vestir igualmente bem. Por isso mesmo, esse crescimento em escala foi complicado. Como produzir essa roupa, que não tem fabricação imensa, da maneira certa? Pois, para as facções tradicionais, enquanto business, é muito mais vantajoso costurar três calças por dia para uma marca maior do que uma calça que demora dois dias para completar, como a nossa. Acabou que meu produto, para elas, não era interessante. Ao mesmo tempo, o produto pegou e começamos a ter um problema de demanda — a roupa chegava e logo acabava. Ainda há uma certa dificuldade de escalar. Como temos ateliê interno, é quase tudo feito no corpo da modelo. É muito moulage, muita prova. É uma roupa que carrega muitas horas de trabalho, do começo ao fim. No final das contas, essas fases que inventamos acontecem — de maneira macro — duas vezes ao ano, com entradas mensais. Começamos o pensamento sempre pela compra do tecido.

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Foto: Igor Kalinouski.

L’O Você vai pela lógica da matéria-prima. 

FDG Isso mesmo. Eu tenho uma cartela de cor anual, que é crescente e se divide entre as fases. É um quebra-cabeça que é muito interessante criativamente. Normalmente, em loja, três fases acabam convivendo — então, preciso fazer uma cartela que dê com a fase anterior e a próxima. A escolha de tecido é assim também. Se estou, por exemplo, em uma fase supergeométrica, não posso pular diretamente para uma coisa orgânica. Tem esses processos de chegada, então é preciso pensar para trás e para a frente. Criativamente é muito legal, pois é preciso amarrar tudo.

 

L’O É como se fosse uma grande coleção que você vai destrinchando desde o começo da marca? 

FDG Mais ou menos isso, sim. É uma história que vai sendo contada aos poucos. Há esse DNA forte, tudo é muito conectado. Começamos com essa cartela de cores, depois a pesquisa de tecidos com as fábricas de fora. Geralmente são empresas italianas, francesas, que produzem um volume menor. Tudo é desenvolvido nas nossas cores, nada é cartela pronta. Se é algo feito em tear, por exemplo, mandamos o pantone de cada linha. Depois eles encaminham o tecido para aprovação, é um processo extremamente longo para essa roupa megaelaborada chegar até a loja. Tem um valor, é algo especial. Ao mesmo tempo, torna-se difícil acompanhar o crescimento da demanda. Mas estamos em um momento de sucesso que é bom.

 

L’O Quando você começou, sete anos atrás, foi antes da indústria da moda entrar no discurso do slow fashion. Mas você já veio com esse pensamento. 

FDG Sim. E na época, tentava explicar para as pessoas e nada fazia sentido, me perguntavam, como assim não vai ter liquidação? Como vai funcionar esse timing? Era uma loucura. Hoje, é um processo bem conectado com a loja — se uma família de calças está no ar, preciso pensar em uma parte de cima que ajude no pensamento. Apesar de planejadinho, é bem dinâmico e segue a demanda. Por isso, é um trabalho legal. Mas era, e é, um jeito novo de trabalhar. Um negócio novo que não tinha uma fórmula pronta. Hoje, temos nosso ateliê e um pequeno núcleo que só faz testes de acabamento. Toda roupa tem um acabamento especial, um detalhe diferente, uma costura. O que me chama atenção na moda é isso, sabe? Gosto desse ambiente de ateliê, do processo. Não são robôs costurando. São pessoas vivas, que, se entregam, questionam se dá ou não para fazer. É um trabalho em equipe, todos são muito importantes.

L’O Diria que você tem um tempo maior de produção, em comparação com o modelo de negócios tradicional? 

FDG Você tem sempre que estar criando, sempre de olho no futuro, essa parte é conectada. Mas o processo de elaboração é realmente longo. Até a peça ficar pronta, até chegar à loja, são quatro ou cinco meses.

 

L’O O mundo mudou completamente desde que você começou com a De Goeye, especialmente na velocidade do consumo de moda. Isso a afetou? 

FDG Mudou, mas as pessoas também. Elas estão mais interessadas, eu sinto, em algo mais exclusivo, com personalidade, que vai durar no armário. Óbvio que na época, foi quase sem querer — era algo que tinha vontade, apenas. Mas o público está olhando para trás e buscando mais, entendendo isso. No começo, ninguém entendia — eu abri a marca e quase fechei logo depois. Pois é uma roupa que demora, que é cara. Hoje, dá-se mais valor. No final, as pessoas gostam de se vestir diferentes — não na produção em massa. E há a coisa legal de ser uma roupa mutável, que dá mil opções para as pessoas.

 

L’O Você chegou a um ponto que faz uma moda usável e interessante que, apesar de ter personalidade, não é estridente. Mesmo fazendo uma coleção inteira de animal print, ela não necessariamente berra. 

FDG É no que acredito, sim. Acho que a pessoa tem que falar mais alto do que a roupa. Muitas vezes vemos por aí que o look chega antes. Gosto de roupas que chegam chegando, da moda, não me entenda mal — mas não que ela fale mais do que quem está vestindo. E também fazemos algo que veste mulheres com personalidades completamente diferentes; pode ser mais velha, mais clássica, ou mais arrojada, mais sexy. Todas conseguem. Tenho essa coisa muito ligada à modelagem, de deixar a mulher bonita. Acho que, quando se faz uma roupa, é preciso ter um jogo de mostra e esconde. Ter um lugar em que a mulher vai se sentir e se valorizar. É uma roupa que, do cabide para o corpo, vira outra história. É inegável. Percebemos que a pessoa que vem e compra uma vez, que veste, vira cliente na hora.

 

L’O E essa linha mais básica? 

FDG Começamos a fazer essa linha que batizamos de Easy. É ainda um bebê dentro de casa, feita com tecido nacional, e pretendo que seja mais escalável. É uma história que começou meio que na pandemia, ainda sem nome. Era para ser uma roupa mais confortável, para ficar em casa. Uma vontade daquele momento específico, né? Mas percebi que foi ficando, as pessoas abraçaram. Então é uma roupa mais casual, um pouco mais tranquila, meio street; que pode-se levar para viagem sem amassar e que veste também uma galera mais jovem, que precisa de um preço melhor. Virou Easy em 2022, este ano estamos crescendo mais com ela. É uma frequência diferente, em comparação às fases da De Goeye principal. Em paralelo, outra ideia é fazer uma linha ainda mais exclusiva, de produção ainda menor. Não que o nível de elaboração vá mudar mas, por exemplo, usaremos um supercashmere que não tem muito por aqui. É para ser uma coisa mais clássica, para ficar no armário. Começaremos bem pequeno agora em junho, com um lançamento maior para o fim do ano. Nem nome tem, ainda estamos pensando.

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Foto: Igor Kalinouski.

L’O Estou percebendo que, no fundo, você é bem elétrica. Como faz para seguir essa pegada slow? 

FDG É slow mas, de certa forma, um slow entre aspas, né? Pois também preciso ficar ligada para ter modelos que mantenham essa certa exclusividade no mix. Preciso de muita oferta, por conta da pouca produção. Então, por mês, são 15 a 20 modelos novos. Sem contar a linha easy, underwear, camisetas etc. É slow no processo de elaboração, claro, mas é preciso ficar criando o tempo todo. E eu gosto de criar, mas o que mexe muito na minha cabeça também é o negócio ser diferente. Gostamos dessa coisa — eu e Renata, minha irmã. Eu sou diretora criativa, mas ela também cria comigo e é a CEO, cuidando dessa logística interna para fazer tudo funcionar nesses novos parâmetros de business. Tivemos que quebrar a cabeça para criar um negócio enxuto, que funcionasse. É um slow muito bem pensado. 

 

L’O É calmo, mas só na superfície. 

FDG Bem assim. E começamos super low profile, até porque, no começo, não sabíamos bem como ia acontecer. A primeira coleção foi até meio errada, as pessoas não entenderam direito — nem tínhamos essa costura tão elaborada, como hoje. Mas daí, no final das contas, acabamos gostando desse perfil escondido. Hoje, tenho sentido uma certa vontade de colocar a cabeça para fora. Tem muita gente que ainda não conhece a marca e tudo o que fazemos aqui dentro, os treinamentos de mão de obra, o trabalho do ateliê que é intenso. Ando com vontade grande de fazer um primeiro desfile, algo que não tinha tido antes. Ficava muito nessa fase de acerto interno, de arredondar tudo. Ainda estamos pensando em como fazer para acontecer, que faça sentido com a lógica da loja; mas provavelmente é algo que venha no segundo semestre. Meu grande sonho mesmo é ir para fora, ter uma loja em outro mercado, outro país. Muita gente já quis comprar da marca para revender em outros países. Mas para isso também é preciso acertar uma logística que ainda não abraçamos. Temos vantagens de trabalharmos inverno e verão juntos, uma certa atemporalidade que funciona… Já houve propostas, mas ainda são planos. Um passo por vez. 

“TODA ROUPA TEM UM acabamento especial, UM detalhe diferente, UMA COSTURA. O QUE ME CHAMA ATENÇÃO NA moda É ISSO, SABE? GOSTO DESSE AMBIENTE DE ateliê, DO PROCESSO. NÃO SÃO ROBÔS COSTURANDO. SÃO pessoas vivas, QUE SE ENTREGAM, questionam SE DÁ OU NÃO PARA FAZER.”

FERNANDA DE GOEYE

L’O Vocês são tão low profile que, apesar do público fiel, têm só uma loja e uma presença online bem parca. Como é isso? 

FDG É algo que trabalhamos em cima com calma e planejamento. Estamos preparando um novo site, agora, pensando nesse projeto online. É algo que faz falta, mesmo de reforço de marca — há um público interessado que não chega até a loja física. Ao mesmo tempo, é um tipo de roupa que é complicada para um e-commerce, atualmente. São muitos detalhes — e mal estamos dando conta da loja, ali seria outra demanda. Pretendo lançar o e-commerce da linha Easy, depois projetar o futuro.

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Fernanda de Goeye - Foto: Igor Kalinouski.

L’O Você falou antes sobre treinamento de mão de obra. Como funciona esse lado da marca? 

FDG Foram vários fatores em paralelo. Começamos a perceber uma certa falta de mão de obra, especialmente porque, para as facções maiores, nosso produto mais elaborado não interessava — e nós somos bem chatas no acompanhamento da qualidade, diga-se de passagem. Por outro lado, para pessoas que já produziam em casa, nossa roupa também era um pouco mais difícil. Então começamos a ajudar no processo e capacitar, pegar costureiros já profissionais e pessoas que amam o assunto e trazer para um momento interno. Eles vêm, fazem a peça pela primeira vez sob nossa supervisão e, depois, produzem por conta própria. Para alguns damos ajuda de negócios, orientamos como organizar e melhorar a produção, auxiliamos na questão do maquinário para fabricar por conta própria. Começamos a criar essa rede. E pagamos bem o valor, por hora. Se uma roupa demora 15, 20 horas, eles são remunerados de acordo, de forma correta. Temos um controle próximo, uma pessoa que visita todos para ver se está tudo bem, para fazer esse acompanhamento. Foram vários processos que fomos colocando aqui dentro para que o negócio desse certo. Resolvemos investir tempo nisso. É algo legal pois, em paralelo, há um certo projeto social envolvido, estamos ajudando muitas pessoas. Gosto de trabalhar com roupa mas, quando se vê que algo está sendo construído em volta, é muito gratificante. Não é só para mim, é para todos que estão envolvidos. Por isso há, também, essa vontade de mostrar o que está acontecendo atrás das portas. As pessoas ficam malucas quando veem tudo o que fazemos, que não é só a arara de um ambiente de loja agradável.

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Foto: Igor Kalinouski.

FOTOS: Igor Kalinouski.

POR: Eduardo Viveiros.

MODELOS: Lia Beatriz e Carol Blugokenski.

ASSISTENTE DE FOTOGRAFIA: Victoria Cavalcante e Rodrigo Gonçalves.

BELEZA: Ju Bonfim.

ASSISTENTE DE BELEZA: Amara Amara.

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