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Visibilidade Trans: Confira entrevista exclusiva com Beta Boechat

Beta conversa com seus seguidores constantemente sobre as mais diferentes questões, informações e curiosidades do universo trans, sendo uma porta-voz essencial do movimento.

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Beta Boechat é uma mulher trans que luta diariamente pela causa em suas diversas vertentes. Nas suas redes sociais, a cofundadora do @movimentocorpolivre, fala sobre a importância da aceitação - especialmente em um mundo que exalta a magreza e padrões quase que inexistentes. Além disso, Beta conversa com seus seguidores sobre as mais diferentes questões, informações e curiosidades do universo trans, sendo uma porta-voz essencial do movimento.

Janeiro é considerado o mês da visibilidade trans há 19 anos e, a necessidade de falar sobre o assunto é vital. O Brasil é tristemente um dos países com mais casos fatais por transfobia e é de extrema importância darmos voz a quem encara essa realidade de frente e convive com a criminosa discriminação.

Por isso, a L’Officiel Hommes convidou alguns nomes incríveis do movimento para falar um pouco mais sobre assunto. Beta respondeu à pergunta: Como eu posso ser um aliado da causa trans não sendo uma pessoa trans? E também deu uma entrevista repleta de ensinamentos. Confira!

 

 Qual a importância do dia da visibilidade trans para a comunidade?

No imaginário popular, pessoas trans ainda estão presas naquelas narrativas jornalísticas de “pessoas que nasceram no corpo errado”, e são vistas com olhares de certa curiosidade e exotismo. Termos um mês, um dia, para falar sobre esse assunto, é fundamental para que mais historias trans possam ser conhecidas, para que nossas vidas, nossas vivências, nossos sonhos, desafios, dificuldades, desejos, sejam vistos e validados. Estamos em um país que pouco inclui pessoas trans em seu dia a dia, e ainda assim, somos os pais que mais mata pessoas trans e travestis, e isso acontece quando não somos vistas como pessoas comuns, seres humanos. Quanto mais exóticas parecemos pra população, maior o risco de violência, exclusão e incompreensão.

Infelizmente, a rotina das pessoas transgêneros e travestis no Brasil é marcada pelo medo, violência, discriminação e falta de oportunidade. Para você, quais são as maiores e principais dificuldades que uma pessoa trans enfrenta no seu cotidiano?

Pessoas trans são tratadas ou como pessoas doentes, que ”nasceram no corpo errado”, que foram “amaldiçoadas” como uma incongruência no corpo, ou pessoas depravadas, desviadas, que querem “acabar com a família” e os bons costumes. Ambas as narrativas, a da vítima e a da transgressora, criam contextos de desumanização dessas vidas. Quando não é vista como uma pessoa normal, essa pessoa já começa com dificuldades em casa, quando é agredida, excluída ou até expulsa. Nos ambientes escolares, pessoas trans tem uma taxa enorme de evasão, porque são alvos constantes de bullying, não só pelos alunos, mas também por um corpo docente que recusa chamá-la pelo nome ou pronome escolhido. Isso tem consequências diretas na empregabilidade dessas pessoas, que com menos qualificações, somada com todo o preconceito, também impede essa pessoa de ter uma vida digna. Na área do relacionamento, a pessoa trans é vista como uma mentira, alguém que “se passa” por outra pessoa para poder se relacionar, e logo rejeitada quando “se descobre o segredo”. Nos poucos relacionamentos que tem, não costuma ser assumida publicamente. O Brasil é o país que mais consome conteúdo pornográfico de pessoas trans, o que mostra o lugar onde essas pessoas tem acesso: o espaço do fetiche. Ser trans é viver uma vida onde sua identidade é constantemente questionada.

 

Muito se fala sobre diversidade e inclusão, mas efetivamente você se sente incluída na sociedade?

Tenho inúmeros privilégios. Sou uma pessoa branca, de classe média, tive uma transição após os 30 anos de idade, já tinha uma carreira e um relacionamento estabelecidos quando me entendi trans. Mesmo assim, pago o preço de ser uma pessoa trans no Brasil. Desde que transicionei, parei de frequentar muitos lugares, principalmente pelo banheiro, que não uso se não for na minha casa. No meu trabalho, preciso provar que sou muito competente para ser contratada. Sou questionada por ser uma pessoa trans com baixa passabilidade, quer dizer, não “pareço” 100% uma mulher, e muitas vezes vejo minha identidade ser questionada por isso. Sou tratada como doida, excêntrica e até desnecessária ou alguém “querendo chamar atenção”. Todos esses pequenos detalhes, que chegam quase antes de você em qualquer lugar, faz com que eu evite estar em sociedade. Então não, não me sinto incluída.

O Brasil vem reconhecendo cada vez mais importantes leis para os transexuais, mas a ainda falta muito! Na sua opinião, como está esse processo no nosso país e como funciona na prática a garantia legal dos direitos?

Nossos direitos estão constantemente na corda bamba. Com a inclusão do Nome Social no RG, pude pela primeira vez ter meu nome estampado em algum documento. Foi só com esse direito que consegui reduzir bastante ser chamada pelo meu nome morto na rua. Hoje, quero tirar um novo RG, porque já mudei muito fisicamente desde meu último documento. Mas não vou fazer isso. Tudo porque entrou em vigor um novo modelo de RG que coloca em destaque meu nome de registro acima do meu nome social, e ainda dá visibilidade ao meu gênero de registro. Mudar meu RG para este novo modelo vai fazer com que a forma que eu sou tratada retroaja, e eu volte a ser chamada pelo meu nome de registro. Isso tudo porque pessoas trans não foram ouvidas nessa mudança. Pequenos detalhes que fazem completa diferença. Mas como vamos ter essas pessoas ouvidas se nosso país não tem interesse nem em saber quantas de nós existimos? Até hoje, politicas publicas para pessoas trans só aparecem depois de muita luta das poucas organizações politicas que temos. E tudo é sempre com muito sacrifício, porque nossas vidas tem sido usadas como arma política por grupos conservadores há anos. Nossas vidas são exotizadas, mentem sobre quem somos e o que queremos, nos tratam como um grupo homogêneo de vilões de histórias em quadrinhos, tudo para tornar nosso grito pedindo para pouparem nossas vidas em um exagero ou um pedido por privilégios. É ridículo ter que debater se somos pessoas de verdade ou não. Se nosso gênero “existe de verdade”. Ser cisgênero e heterossexual não é e nunca foi a única forme de viver em toda a história da humanidade. Não nascemos ontem, não aparecemos ontem, não somos uma moda. Estamos aqui desde o que humano é humano e queremos continuar existindo sem ter que lutar pela nossa vida todos os dias.

 
 

O que você tem para dizer para aqueles que se sentem discriminados e com dificuldades de se inserirem no mercado de trabalho? A quem recorrer? O que fazer?

É cruel dizer que infelizmente, não existem tantas soluções assim. Pessoas trans e aliados precisam ser mais vocais e ativos na abertura de oportunidades para outras de nós. Pessoas LGBTQIAP+, em especial, pessoas trans, travestis, queers, estão há séculos sobrevivendo através daquilo que a gente chama de família. Somos tão acusados de querer “destruir a família”, sendo que somos nós aqueles que sempre dependemos de nossas famílias para viver. E aqui eu chamo de família aqueles que estão no mesmo barco que a gente, amigos que se tornam mães, pais, irmãos, que constroem uma ligação que vai muito além do sangue. Precisamos de uma sociedade mais trans, de um mercado de trabalho mais travesti, de relações mais queers. Repensar o que esperamos do mercado de trabalho, das empresas, das equipes de trabalho.

 Ainda existe segregação e preconceito nos relacionamentos amarosos e amizades?

Preconceito existe para todo lado. Infelizmente, inclusive dentro da comunidade lgbt. Pessoas trans normalmente se relacionam, seja em amizades, seja em relacionamento amoroso, entre pessoas trans. Nossas histórias ainda são contadas como pessoas fora da normalidade, o que cria barreiras enormes para que pessoas cisgêneras possam nos ver como seres humanos iguais a eles.

 

Você acredita que existe uma contribuição efetiva da moda com a causa trans? O que poderia ser feito?

Desde sempre, a moda é feita por pessoas lgbts, pessoas trans. Mas nem sempre, estamos nos holofotes. Moda é política, a forma que nos vestimos, como nos apresentamos, que adereços escolhemos pra nos apresentar ao mundo, é politica. Quando a moda ainda está tão presa em reforçar estereótipos masculinos e femininos, ainda estamos tirando pessoas trans do holofote. A moda que constrói, que questiona, que transgride, que chacoalha o que temos como normal, é uma moda que está preparada pra ver além da beleza cisgênera, dos papéis de gênero.

O que você gostaria que o mundo soubesse sobre as pessoas trans?

Rimos, sofremos, choramos, sangramos, como vocês. Não temos certeza de quem somos, estamos em constante construção, mas isso não é uma exclusividade de pessoas trans, mas sim uma característica de qualquer ser humano. Talvez nós tenhamos um pouco mais de coragem de assumir que somos esse canteiro de obras em eterna atividade. E não queremos nos desculpar pelo inconveniente.

Como foi o seu processo de transição?

O assunto trans sempre foi algo que me trouxe curiosidade, mas minha história está longe de ser aquela clássica história do menino que queria usar rosa. Me entender trans em parte teve a ver com redescobrir o que me fazia feliz. Dizemos que pessoas lgbts passam a infância e adolescência inteira tentando se podar para caber, e depois uma fase adulta inteira tentando descobrir do que abrimos mão e o quanto aquilo nos faz falta para sermos felizes. Transicionar pra mim foi um processo de me permitir. De olhar no espelho e saber que eu podia, sim, me achar bonita, algo que eu passei uma vida inteira evitando. A Beta que hoje eu sou, em algum momento era só uma vontade de experimentar que vivia dentro de um homem extremamente masculino, que entendeu que a falta de emoção, de ser impenetrável, era a única forma de sobreviver. Me colocar vulnerável, aprender a confiar no outro, me abrir para me relacionar, pra quebrar a cara, pra ser alguém além daquilo que esperavam de mim, tudo isso nasceu da minha transição. E o que eu mais amo em mim hoje é ter apenas uma certeza: que o que eu sou hoje não está completo, e que talvez nunca esteja. Gosto de pensar que somos obras de arte inacabadas. E é essa pincelada que está sempre faltando que nos faz querer continuar vivas.

O que você considera fundamental durante o processo?

Se livrar das expectativas, inclusive as nossas próprias. Saímos da cisgeneridade direto pra uma lista enorme de novas exigências que vão nos tornar “trans de verdade”. Não existe trans de mentira, não importa o que digam. Recebo diariamente mensagens de pessoas desesperadas por não saberem o que são. Não sabem se tem o direito de se chamarem de trans, não sabem se são “trans o bastante”, e o meu conselho é sempre o mesmo: DEIXA ISSO PRA LÁ! Experimenta! Se você não sabe o que fazer, tenta. Não tem nada errado em se arrepender. De ver que não era pra você. Que não era bem por aí. A gente nunca volta pro mesmo ponto na vida. Se você tentou e voltou atrás, já não é mais a mesma pessoa, já tem novas experiências, já se conhece melhor, e tudo isso vai ajudar você a descobrir esse lugar de conforto dentro da sua própria pele.

 

Quais foram seus maiores medos e as maiores felicidades durante a transição?

Minha maior frustração de longe é a minha mancha de barba. É o que mais faz as pessoas me tratarem no masculino, independente da maneira como eu me vista, me apresente ou me porte. A barba tem esse poder de “revelar a verdade” para as pessoas. Mesmo que esteja na cara que eu não queira ser tratada no masculino, ela faz as pessoas se sentirem bem em me chamar assim. Eu poderia dizer que tanto faz, e que eu vou continuar nessa batalha de ter minha identidade respeitada com ou sem barba, mas tem dias que você não quer criar um climão na fila da padaria. Você só quer comprar seu pão e passar invisível. Ter o privilégio de não ser vista como uma aberração na rua.

O que você gostaria de dizer para as pessoas que estão passando pela descoberta da transexualidade?

Procure outras pessoas trans, tem coisas que só nós entendemos entre nós.

O ano ainda está começando, mas com certeza promete muitos sucessos! Nos conte um pouco sobre seus planos, projetos e sonhos para 2023?

2023 vai ser um ano incrível tanto pra mim quanto para a instituição que sou cofundadora, o Movimento Corpo Livre. Nas minhas redes, os seguidores podem esperar muito mais conteúdo educativo sobre gênero e corpo, mas também um novo videocast de entrevistas com objetivo de dar visibilidade a pessoas lgbtqiap+. Quero contar nossas histórias, registrar nossas vidas, sem filtros. Já no Movimento Corpo Livre, teremos não só alguns novos programas, como um reality show sobre aceitação corporal que tá no forno! No final do ano passado, abrimos nosso primeiro espaço físico, a Casa Corpo Livre, e voltamos com os eventos presenciais. Pra esse ano, vamos viajar o Brasil espalhando a palavra da aceitação corporal e do amor pelo seu corpo e por quem você é. Isso tudo e mais outras novidades que ainda são segredo.

 
 

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