Moda

Dendezeiro: Hisan Silva e Pedro Batalha em entrevista exclusiva

Frutos próprios! Tocada por dois rapazes de Salvador, a Dendezeiro ganha espaço como força de criação coletiva vinda de fora dos centros óbvios.

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Fotos: Kevin Oux

Surgida em 2019, a jovem Dendezeiro acumulou em pouco tempo um histórico único no cenário da moda nacional. Projeto de Hisan Silva e Pedro Batalha, a marca nasceu em Salvador e lá mantém as suas raízes — uma vontade não só de firmar a existência de uma moda nordestina contemporânea como a necessidade de que o mercado, comumente monopolizado pelos centros do Sudeste, olhe a potência de um mercado criativo local na capital soteropolitana. É a isso que a dupla se amarra — e é o que fez, em quatro anos, com que os frutos passassem pela Casa de Criadores e assumissem o seu espaço no SPFW, além de collabs com empresas de peso, como Havaianas, Instagram e C&A, e outros artistas nacionais com uma moda sem gênero e altamente urbana que confronta o que o público costuma associar a Salvador. Irrequietos e na casa dos vinte e tantos anos, Pedro e Hisan conversaram com L’OFFICIEL pouco antes do segundo desfile presencial na semana de moda paulistana, em maio, e deixaram bem claro que, se depender deles, as fronteiras são bem maiores.

A Dendezeiro completou quatro anos de marca e vocês são dois criadores em ascensão. Qual o balanço até agora?
HISAN SILVA: Temos conversado muito sobre isso. Eu olho a Dendezeiro hoje, Pedro olha, e ficamos lembrando do embrião que era, de quando era só uma ideia. Por mais que o SPFW não esteja no lugar de glória que já significou, para nós ainda é uma outra parada. Para a gente de Salvador, SPFW era — e ainda é — uma grande vitória. Quatro anos atrás, era um local muito distante. Hoje, já achamos o SPFW um lugar muito pequeno para a Dendezeiro, precisamos alçar outros voos, conectar com outras coisas.

PEDRO BATALHA: Eu nem concordo tanto com a palavra “pequeno”, mas digo que é uma ponte — para de fato chegarmos em outros locais onde queremos. A nossa meta mudou demais ao longo do tempo. Quando começamos a marca, achávamos que entraríamos no SPFW entre 5 e 10 anos — e isso aconteceu em 3. Da ótica de Salvador, há essa perspectiva de que São Paulo é o mundo — mas não é. O nosso cuidado é passar pelo SPFW de maneira proveitosa, que dê bons frutos. É uma vitrine muito grande, queremos aproveitar tudo o que pudermos; entendendo que não vamos fincar carreira por ali. Queremos conhecer outras coisas, viajar o mundo, fazer outras passarelas. Alçar outros voos, sabe?

HS: É algo de perspectiva. Antes, olhávamos ali como o lugar mais alto. Hoje, é um degrau que é tecnicamente pequeno quando falamos sobre a quantidade de possibilidades que o mundo oferece. Estamos com essa vontade de internacionalizar a marca, conversar com outros mercados — especialmente porque sentimos que as pessoas de fora têm se conectado com o que criamos, já vemos uma porta. Cada vez mais, quando falamos sobre o que queremos criar, até mesmo seguramos um pouco o que desenvolvemos, pois analisamos como isso pode impactar no mercado. Queremos criar algo que consiga conquistar outros lugares. Estamos muito nesse momento.

PB: E é um momento difícil para a moda nacional. Estamos pegando um ano pós-Bolsonaro, há uma perspectiva de mudança para várias coisas, mas ainda sinto que há questões. Começamos a Dendezeiro com muitos sonhos, perspectivas e imaginários de como é o mercado de moda. Com o passar do tempo, passamos a compreender como ele funciona. E fizemos isso quebrando a cara, acertando e errando. Nesses quatro anos, uma das coisas que mais percebemos é que o grande desafio é saber como fincar cada vez mais os pés da marca para lidar com a instabilidade da moda. Isso acontece entendendo como o fluxo acontece, como a publicidade funciona com a moda agora, os projetos que estão sendo buscados. É um momento de muitas variáveis para a marca avaliar e entender o que de fato queremos ser, para onde queremos ir. Se todos os caminhos que seguimos podem nos levar ao objetivo que queremos, de expansão, conexão com outros artistas, outros criadores. Pois a Dendezeiro sempre foi muito sobre isso: criatividade acima de tudo. Então, todas as variáveis que calculamos nesse momento são sobre não perder isso de vista e potencializar cada vez mais. Para ir além de uma marca que só vende roupa, fortalecer mais esse projeto criativo. É o objetivo principal.

No início, vocês sempre bateram muito na tecla de não querer sair de Salvador, mostrar que não é necessário mudar para São Paulo para a história acontecer. Aparentemente, isso tem dado certo. Essa vontade continua?

HS: Tem dado certo porque, cada vez mais, viramos o olhar para Salvador e conseguido realizar as coisas de lá. Por outro lado, é um desafio imenso. É literalmente saber que estamos trabalhando quatro vezes mais para trazer esses olhares do mercado, enquanto há marcas que nasceram em São Paulo, com acessos muito mais fáceis. Ao mesmo tempo, a nossa maior clientela é paulista — a Bahia fica em quinto lugar. Fazer isso acontecer a partir de lá é um grande processo de reconstrução de autoestima — tanto das pessoas de Salvador, para fazer com que elas entendam e sintam que a moda não é algo distante; assim como conectar, falar sobre esse poder de compra, tornar isso uma prioridade. Em contrapartida, fazer o Brasil olhar para lá não só como um espaço com criadores potentes, mas como uma região que é potente. O motivo de termos vários criadores surgindo é justamente o ambiente, é um espaço que inspira. É muito massa ver como as pessoas que trabalham conosco não só se conectam com o que estamos contando, mas também entender como isso muda a vida das pessoas. Perceber como elas visualizavam o mercado de moda, as possibilidades de trabalho, como algo completamente distante. Ao mesmo tempo que é muito lindo e inspirador, é um caminho complicado e doloroso.

Essa posição de Salvador no quinto lugar, diriam que é uma questão de construção de desejo ou de alcance financeiro?
PS: Diria que é um pouco pela estética também. Temos uma linguagem que se conecta com a identidade cultural de onde vivemos — seja no nome da marca ou até mesmo permanecendo e trabalhando com equipes de lá. Mas além disso, a nossa perspectiva de moda acaba abraçando outras condições climáticas, de peças grandes e sobreposições, muito mais recorrentes em São Paulo e em outros locais.

HS: E Salvador é uma cidade diurna, isso é algo muito evidente que afeta a movimentação — não só da moda, mas outros ambientes de empreendedorismo que falam sobre festas, sobre noite, que acabam não vingando, pois não é uma cidade noturna. E isso impacta diretamente na dinâmica da pessoa consumir cultura, comprar e se vestir. Entendemos a Dendezeiro como uma grife, não como fast fashion. Justamente por isso, as pesso- as entendem que as nossas peças precisam de uma ocasião especial para vestir. E nem sempre há essa rotina. No Carnaval ou no Afropunk, é lindo ver um monte de gente usando as nossas peças. Mas não é uma rotina cheia de opções como em São Paulo, por exemplo, que tem até coisa demais acontecendo.

PS: Nossa linguagem de roupa não é algo que case com o dia a dia de Salvador. As nossas construções mais artísticas, mais elaboradas vão para outro lado. Não tem como usar um supercasaco em Salvador, não vou conseguir caminhar cinco minutos com ele. Tudo isso acaba importando.

Essas barreiras não impactam nessa resistência de não sair de Salvador?
HS: Acho que essa ideia tem ficado cada vez mais volúvel. Não necessariamente largar a base em Salvador, pois isso nunca vai acontecer — mas construir outras. Entender que lá continua sólido, mas já temos gente fixa trabalhando para a gente em São Paulo e no Rio de Janeiro. Cada vez mais, sentimos a necessidade de construir esse pé sólido em outros lugares, especialmente quando pensamos nesse momento de internacionalização. Afinal, São Paulo é uma grande porta para o exterior, dá essa chancela para outros lugares.

Vocês naturalmente se encaixam nesse grande movimento de atenção a marcas nordestinas que tem acontecido, especialmente de um ponto de vista paulistano. Até que ponto enxergam nisso uma vantagem?
PB: Há uma quebra de expectativa das pessoas quando elas pensam na Dendezeiro. Ouvimos sempre dúvidas de que a marca é da Bahia, acontece demais. Há esse espanto que é muito problemático, pois é como se algo que acham tão fantástico não pudesse sair de Salvador, como se não pudéssemos passar desse lugar caricato. E o mercado muitas vezes enclausura a gente nesse local de marca nordestina, de marca preta, nos direcionando como se apenas um público pudesse consumir. Mas a Dendezeiro tem o tamanho que tem e essa imagem, construída por duas pessoas nordestinas, baianas, pretas, LGBTQIAP+, e isso não pode determinar o que a marca será. As pessoas tendem a esse pré-julgamento de como deveríamos nos portar, parecer. Esperam estampas, cores, todos os clichês e isso não é nossa praia! A Dendezeiro é marrom, é terrosa, bege, off-white, enorme. É desafiador permanecer em Salvador, pois lidamos com um mercado brutal. O tempo inteiro nos forçamos a sair dessa caixa pois nossa ideia é globalizar. Temos a noção de que, quanto mais nos segmentamos, mais o mercado vai nos sucatear para um lugar em que ninguém deveria estar enclausurado. Existe um eixo de marcas nordestinas porque existe um monopólio sudestino. Se não houvesse essa concentração de projetos, de circulação de dinheiro em São Paulo; se houvesse uma visão equiparada, uma distribuição de verba, talvez não precisássemos falar tanto sobre essa segmentação, esse estigma de marca nordestina.

HS: É justamente por isso que não temos como deixar a base. A cidade é nossa maior inspiração. Se nos afastamos, o olhar fica muito superficial. As pessoas têm essa impressão de que Salvador é uma cidade colorida o tempo todo, que é esse espaço de Pelourinho e felicidade eterna. Mas é uma cidade grande como qualquer outra, com várias camadas. Por isso também essa resistência, desse local como mente criativa. Entendemos a importância da Dendezeiro em dar corpo a essa faceta que não é tão representada. Falar sobre uma marca nordestina que aborda os assuntos como abordamos, é isso que nos mantém no nível que alcançamos. Nesse último desfile trouxemos a terceira edição da coleção Cor de Pele, com uma visualização completamente diferente. O que nos permite manter esse estudo, aprofundando, é justamente estarmos lá. Por isso conseguimos falar sobre Salvador sob um referencial que não é necessariamente o do ponto da agulha, mas a forma que estamos contando a história daquelas roupas.

Essa vontade de traduzir a vivência de Salvador como uma moda urbana foi planejado para fazer algo diferente ou veio de forma natural?
PB: Nós começamos a fazer moda por uma perspectiva individual — do que queríamos vestir e não encontrávamos, especialmente com a segmentação do que é feminino e masculino. Então vem da nossa realidade os pilares da marca: o racial, que entende que as pessoas podem consumir manequins pretos com naturalidade como nós a vida toda consumimos a imagem de pessoas brancas, assim como nossas equipes, majoritariamente racializadas; o agênero, algo que não conseguíamos comungar com o mercado da época. E o pilar do corpo, que é essencial. Salvador é a cidade mais negra fora da África, há essa ancestralidade que dá nessa diversidade muito grande de corpos. É um assunto importantíssimo para nós. Por isso, sempre pensamos em como podemos ajustar, regular as roupas; fomos criando ferramentas de amarração, modelagens que fossem mais inteligentes para mais corpos, com uma múltipla regulagem.

HS: Há também o rolê da rua que nos inspira demais. O movimento hip hop de Salvador é incrível, o rap, o trap, amamos a forma que as pessoas vivem as ruas, o movimento punk. Tudo isso nos inspira por serem ritmos que consumimos. São comportamentos que gostamos de analisar e traduzir na marca. Quando falamos sobre diversidade é também sobre os movimentos culturais. Todas as ideias que rompem essas barreiras, que discutem, são algo que vieram de berço, de família. Nesse caminho de construção de identidade, olhamos para a moda como um espaço em que conseguimos decifrar e colocar para fora tudo o que gostávamos. Salvador é muito diversa, quando se fala em ser um ponto de inspiração. Olhamos para a Dendezeiro como uma empresa para dominar o mundo: queremos estar na China, na Coreia, onde for, em todos os lugares; e que as pessoas pesquisem o que é um dendezeiro e aprendam que é uma árvore que nasce na Bahia. Quando fundamos a marca, pensamos em como levar tudo o que aprendemos para o mundo — esse pensamento já era primordial. E passa também pelo que gostamos de estilo: misturar a alfaiataria, que achamos muito chique, com esse espaço street que é nossa vivência de dia a dia.

E a praia, entra onde nessa história?
PB: Entra no visual, no imagético, nas campanhas, na representação que traz essa conexão identitária da cidade com o mar. Somos de religião de matriz africana, então o mar tem uma representação muito forte para nós; assim como para qualquer pessoa preta brasileira, por fazer parte desse processo histórico de travessia. O mar sempre esteve ali nas nossas vidas, então vem nesse local de reconexão.

HS: 
Criamos esse braço da marca, a Dendezeiro Tropical, de sungas e biquínis, macacões para vivenciar o dia a dia da praia. Mas não é o nosso foco principal, não é para esse lado que sentimos.

Poucos meses depois que a Dendezeiro surgiu no cenário das novas marcas, houve um momento em que parecia que só se falava em vocês. Conseguem enxergar o motivo para este boom?
HS: Acho que a moda nacional viveu um bom tempo olhando só para o exterior, o que acontecia na semana de moda de Paris, em Nova York, e implementando isso para si. O que tentamos fazer logo no início foi trazer o nosso DNA e elevá-lo para outro local. É exatamente o que estávamos falando: quando as pessoas pensam em moda nordestina, pensam imediatamente em renda e só. Foi um choque muito grande quando viram uma marca de Salvador que trabalha com sarja pesada, com volumes, que é moderna e não está nesse local de tradições. Esse momento abrupto foi quando começamos a discutir que a moda nacional ia muito além de São Paulo. Diversas outras iniciativas foram borbulhando e o público passou a perceber e valorizar. Naquele momento, era uma moda criada por pessoas nordestinas que rompiam essa ideia de que no Nordeste só se produz renda. Elas agora veem outra representação, outra forma de pensar.

PB: Não existe um cálculo de como aconteceu, foi natural com as variáveis do momento que fizeram com que tudo se maximizasse. Me pergunto até hoje como fazer para a marca ir se desenvolvendo, é sempre fazer a manutenção da roda com o carro andando. Não dá muito tempo para avaliar, nem conseguimos dialogar sobre o tanto que já fizemos nesse curto período. Estamos sempre de olho no próximo passo. E nos entendermos enquanto artistas, que não querem fazer uma marca que venda roupa, mas expanda a criatividade — isso aguçou um sentimento nas pessoas. É algo que queremos refinar sempre. Diversidade, pluralidade, são coisas que você não para de estudar. E a moda é um mercado que avança o tempo inteiro.

HS: Sempre olhamos o mundo ao nosso redor, acho que isso se tornou um diferencial. Trazemos o nosso senso crítico para entender o que está acontecendo e como podemos buscar dar um quê de Dendezeiro àquilo. A forma que pensamos criativamente foi algo que fez as pessoas se apaixonarem. E também trabalhamos muito! Já fundamos a Dendezeiro na linguagem do corre. Vender a roupa é talvez o último passo. Nesse caminho falamos sobre desenvolvimento de criatividade, de cenário e de projetos; falamos sobre lifestyle, sobre levantar pautas importantes. Tudo isso resulta na roupa que, quando chega na pessoa, já está carregada de significados. Esse sentimento faz parte do boom, com certeza.

Vocês sempre articularam numa esfera que é sobre o rolê, sobre o coletivo que vai além dos dois. Isso também é uma vantagem, não?
HS: Atuar sobre esse espaço de conexão de várias pessoas é algo muito massa. Sempre falamos sobre isso: olhe para as pessoas ao seu redor, entenda como elas querem avançar. Assim como discursamos sobre esse instigar, é sobre vários criativos que cresceram junto conosco — nós e eles, trocando e nos desenvolvendo. É sobre crescer criativamente na marca e construir a autoestima das pessoas de forma geral. Acreditamos na coletividade de Salvador, pois todo mundo vai junto. Não somos a primeira marca a brilhar em Salvador e, neste momento, absolutamente, não somos a única. O coletivo faz parte dessa história que contamos. Não temos o menor interesse em falar sobre rivalidade, essa ideia antiga de mercado de moda. A forma que nos conectamos é uma representação de identidade. 

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